Recentemente, me peguei pensando muito sobre como a nossa identidade é construída. Será pelas nossas próprias escolhas? Pelas lentes com que o mundo nos enxerga? Essa inquietação se intensificou ao acompanhar as instigantes aulas do curso "As Tramas do Humano: Literatura e Subjetividade com José Garcez Ghirardi" e, principalmente, ao revisitar a obra transformadora de Neusa Santos Souza, "Tornar-se Negro". Sabe aquela sensação de que algo te marca, te define, mas nem sempre da forma como você gostaria?
Uma imagem em particular não saiu da minha cabeça: a da "letra escarlate". Longe de ser apenas um símbolo literário de punição, ela me pareceu uma metáfora poderosa para as marcas, muitas vezes invisíveis, que a sociedade imprime em nós, especialmente em quem é negro, e a jornada fascinante que é ressignificar essas marcas.
O "A" que a Sociedade Tenta Impor: Um Olhar Gentil sobre a Alienação
A gente cresce ouvindo que somos livres para sermos quem quisermos, não é? Mas, para muitas pessoas, essa liberdade vem com um asterisco. Neusa Santos Souza nos ajuda a entender que, para quem é negro, a sociedade, com suas expectativas e preconceitos, pode acabar "costurando" uma espécie de "letra escarlate" invisível. Não é uma letra de condenação, mas de alienação, de um convite sutil (e às vezes nem tão sutil) para nos afastarmos de quem realmente somos e nos encaixarmos em padrões que não nos representam.
É como se a gente se visse no lugar de personagens como Hester Prynne, de Nathaniel Hawthorne, que sentiu o peso de uma comunidade que julgava e tentava impor uma única forma de ser. Ou como Dorian Gray, que nos faz pensar sobre como a sociedade pode, sem querer, nos levar a esconder quem somos de verdade por trás de uma fachada. A "letra escarlate da negritude" é, então, um lembrete dessa pressão externa que, por vezes, tenta nos dizer quem devemos ser.
O Poder de Dizer "Não": Um Gesto de Autoamor
Mas aqui vem a parte mais bonita e inspiradora: assim como Hester Prynne se recusou a se curvar e manteve sua integridade, o processo de "tornar-se negro" é um ato de puro autoamor e resistência. É um "não" gentil, mas firme, àquilo que tenta nos diminuir. É a coragem de abraçar a própria "letra escarlate" – nossa pele, nosso cabelo, nossos traços – e transformá-la não em um estigma, mas em um símbolo de nossa força, beleza e autenticidade.
Essa jornada é como a daquela tartaruga teimosa de John Steinbeck, que, mesmo com todas as dificuldades e "caminhões" tentando atropelá-la, segue em frente, plantando sementes de esperança por onde passa. É uma luta que pode parecer silenciosa, mas que é incrivelmente poderosa, gerando uma nova forma de existir e de se relacionar com o mundo.
Desvendando a Identidade: O Afeto que Acolhe e o Nome que Virá
As aulas nos mostraram que as "grandes histórias" que nos contaram talvez não sejam as únicas verdades. E que a "razão" nem sempre foi tão neutra assim. Isso abre um espaço maravilhoso para valorizarmos o que é único em cada um de nós. Neusa, com a psicanálise, nos convida a mergulhar nas nossas próprias histórias, nos nossos sentimentos mais profundos, para entender quem somos de verdade.
O "tornar-se negro" é, então, uma jornada de ressignificação. É um convite para curar as feridas que a sociedade pode ter causado, acolhendo todas as partes de nós mesmos. É um olhar carinhoso para a própria história, para o próprio corpo, com a sensibilidade que Virginia Woolf nos ensina, revelando a beleza e a profundidade da vida que pulsa sob a superfície.
Afinal, a nossa identidade, assim como o nome de uma criança em O Xará, não vem pronta. Ela é construída com afeto, apoio e cuidado, em um ambiente onde o "nome certo" – a nossa identidade plena e autônoma – vai se revelando com o tempo, a partir da aceitação e celebração de quem somos. "Tornar-se Negro" é, acima de tudo, esse convite para transformar qualquer "letra escarlate" em um selo de pertencimento, um grito de liberdade e uma celebração da nossa humanidade em sua totalidade.
E você, já parou para pensar sobre as "letras escarlates" que podem ter sido impostas em sua vida?
Como você tem ressignificado essas marcas?
Convido você a compartilhar suas reflexões nos comentários abaixo. Sua experiência pode inspirar e fortalecer outras pessoas nessa jornada de autodescoberta e aceitação.